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História nº 35: Até que enfim, Japão!

Meus pais se conheceram faz 24 anos. A minha mãe, que vivia desde os 9 anos no Japão com a família, estava de volta ao Brasil para comparecer ao casamento de um parente. E o meu pai, que era grande amigo do noivo, foi à cerimônia de casamento vestindo terno, uma roupa que raramente usava.

Não sei dizer exatamente se, para os dois, foi um caso de amor à primeira vista. A minha mãe, toda encabulada, diz que a primeira impressão que teve ao vê-lo foi muito boa, enquanto o meu pai fala que pode ter sido o terno de cor cintilante que ele vestia na ocasião.

Na época, a minha mãe estava com 20 anos e trabalhava na seção de cosméticos de uma loja de departamentos em Yokohama e fazia diversos cursos. Meu pai, de 26 anos, morava em São Paulo com os pais, a avó, um irmão e duas irmãs abaixo dele e administrava uma grande oficina mecânica.

Meio ano depois os dois se casaram no Brasil e o plano inicial era ir morar no Japão dentro de 2 anos. A minha mãe, que tinha toda a família morando lá, bem que gostaria de voltar logo, mas os negócios do meu pai estavam indo muito bem e ele tinha que arcar com as despesas escolares das irmãs e custear o tratamento médico da avó. Desse modo, começaram a vida no Brasil e, um ano depois, tiveram um casal de gêmeos e três anos depois eu nasci. Meus pais, então, decidiram esperar até os filhos terminarem o ensino fundamental no Brasil. Por isso, meus irmãos e eu fomos matriculados na escola de língua japonesa com a idade de 7 anos. “Como vamos morar no Japão num futuro próximo, vocês precisam estudar bem o japonês” – dizia minha mãe nos dando o maior apoio.

Mas quando eu estava com 8 anos, o Brasil entrou numa séria crise econômica. Meu pai foi obrigado a fechar a oficina mecânica que tinha havia anos e ele e o meu avô foram trabalhar no Japão. Ficou combinado que ele chamaria a família quando meu irmão e minha irmã terminassem o ensino médio e eu o ensino fundamental. Assim, nós nos esforçamos muito esperando chegar o dia de toda a família ficar junto. A minha mãe, que cresceu no Japão, acabou gostando tanto de comida brasileira que até fez um estágio no restaurante de um conhecido para abrir no Japão um delivery de comida brasileira. A minha avó que é nascida no Brasil dizia preocupada: “Será que o pessoal lá vai entender o meu japonês?”.

Certa vez, as minhas notas abaixaram e a diretora da escola mandou chamar a minha mãe. Quando soube que eu frequentava a escola de língua japonesa, a diretora disse para parar. “Acontece muito com nossos alunos descendentes de japonês. Em casa só falam japonês e aí a criança não desenvolve o português”.

Ao saber disto fiquei surpreso: “Mas como? Eu sou o único que não fala japonês em casa! Não entendi essa!”. Minha mãe parece que não se convenceu, mas a verdade é que não fui mais à escola japonesa e me concentrei no estudo de Português e História, as matérias com as notas mais baixas.

Em 2016, ao término do primeiro semestre da oitava série, eu sofri um sério acidente. Fim de tarde de sábado, eu tinha ido brincar de skate com meus amigos e estava voltando para casa andando pela avenida, quando, de repente, fui arremessado alguns metros adiante. Quando dei por mim, estava no hospital e lembro que senti um alívio ao ver o rosto da minha mãe, minha avó e meus irmãos.

Eu tinha sido atropelado por um carro esporte, fraturando a perna e tendo ferimentos graves na cabeça e no rosto. Para azar meu, fui envolvido num acidente com um carro que estava participando de um racha!

Tive de passar vários meses em tratamento e recuperação em casa, o que me impediu de concluir o segundo semestre da oitava série. Em dezembro do mesmo ano, a minha avó e meus irmãos partiram para o Japão, e depois da minha família pensar muito, ficou decidido que eu permaneceria no Brasil.

Depois que meus irmãos partiram, a minha mãe ficou no Brasil mais uns dois meses, tempo em que ficou organizando a minha nova vida. Aprendi com ela desde como cozinhar arroz até a lavar roupa e fazer faxina. Fui morar no apartamento do meu tio que estava trabalhando no Rio e voltava para casa a cada duas semanas. No começo ficava um pouco atrapalhado com as coisas, mas até que me acostumei mais rápido do que pensava. O esquema era o seguinte: tomar o café da manhã às 6 horas; às 6h40 chegar na estação de metrô; das 7h30 às 15 horas ficar no colégio; das 16 horas em diante fazer aula de japonês e de inglês; aos sábados atividades esportivas na escola e curso de computação; aos domingos lavar roupa e fazer faxina. Quando meu tio estava em casa costumávamos sair para churrascaria ou pizzaria, que era uma de minhas diversões.

“Tenha um pouco mais de paciência” – era como minha família me incentivou o tempo todo. Graças a Deus que deu tudo certo e sou muito grato a todos.

Terminei o ensino médio em dezembro de 2019 e logo depois, finalmente, pude viajar para o Japão que era a coisa que mais queria!

Meu pai e meu avô trabalham duro na fábrica de peças automotivas com o objetivo de um dia começar uma oficina mecânica.

A minha mãe começou o delivery de comida brasileira e está indo bem.

O meu irmão – como tenho orgulho do Oniisan – ele estuda Farmácia na Universidade de Tohoku e estará se graduando no próximo ano.

A minha irmã – a Oneechan é demais – depois que fez um trabalho temporário numa fábrica de bolos, estudou para conseguir a licença de pâtissière, ou seja, chef confeiteira. Agora ela trabalha numa confeitaria em Nagoya e sente-se realizada com o que faz.

A minha avó de 82 anos, que nunca tinha manuseado um celular, agora usa o aparelho muito bem e está feliz da vida! Outra paixão é ouvir as músicas de Hikawa Kiyoshi.

E eu, além de continuar estudando japonês, vou a uma instituição onde ficam os filhos de decasséguis depois das aulas e ajudo vendo a lição de casa das crianças. Também dou uma mãozinha no delivery da minha mãe anotando os pedidos por telefone. E quando o meu pai abrir a oficina mecânica, vai ser lá que pretendo trabalhar.

O Japão é demais! Tenho que me esforçar. Gambarimasu!

 

© 2020 Laura Honda-Hasegawa

Brasil dekasegi ficção trabalhadores estrangeiros Nikkeis no Japão
Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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