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História nº 37: Não vai ser a Covid que vai me derrotar, não!

Em 1998, quando eu tinha 5 anos de idade, eu fui com meus pais para o Japão. Meu pai trabalhava numa farmácia e minha mãe num supermercado, mas como a situação financeira estava difícil, decidiram ir trabalhar no Japão para terem melhores condições de vida.

No começo, os dois trabalhavam na mesma fábrica, mas como o meu pai é nikkei e sabe falar japonês, foi transferido para a matriz da empresa. Nesse meio tempo, minha mãe deixou a fábrica e foi trabalhar numa loja de produtos brasileiros.

Eu estudei no Japão desde a pré-escola até terminar o ensino fundamental e, relembrando, foi a melhor fase de minha vida. Graças aos professores e aos meus colegas aprendi a falar o japonês, tanto que quem ensinou a língua para a minha mãe, que é descendente de espanhóis, fui eu e não o meu pai. Meu irmão, ao contrário, nasceu lá no Japão, mas não fala japonês.

E como meu irmão não conseguia se adaptar ao ensino na escola japonesa e devido também ao chamado “Lehman Shock” que atingiu a economia do Japão em 2008, meus pais acharam que o melhor seria voltar ao Brasil, o que fizemos nesse mesmo ano.

Começamos vida nova na cidade de Campinas, Estado de São Paulo, onde mora a família da minha mãe. Meu pai, que herdou do meu avô o jeito para os negócios, construiu uma grande loja com o nome “Super Shimada”, mas até hoje não sei se esse “Super” seria abreviatura de “Supermercado” ou teria origem em “Superman – ou seja, significando “Shimada, o Super-herói”.

Os negócios foram expandindo aos poucos e, passados cerca de cinco anos, a loja ganhou um espaço destinado a servir comida japonesa, com a minha mãe preparando os pratos que tinha aprendido no Japão. Como seu nome é Camila, ela criou um cardápio com pratos como: “Croquete da Catchan”, “Tempurá da Catchan”, “Karê da Catchan” e ficava feliz ao ser chamada de Catchan pela clientela.

Eu me formei na Unicamp e atualmente trabalho como engenheiro de computação.

O meu irmão completou 20 anos e ajuda na contabilidade da loja, estuda Administração e joga futebol no time de amadores.

A “Super Shimada” abriu recentemente uma filial e os negócios vão indo de vento em popa. Quando se aproxima o final de semana, meu pai sai para pescar com os amigos e volta no domingo à tarde, bastante satisfeito por esse tempo de lazer.

Três anos atrás, casualmente, eu reencontrei nos Estados Unidos a Anelisa, uma ex colega do ensino fundamental no Japão. Nós começamos a trocar mensagens e agora estamos até fazendo planos para nos casar num futuro próximo.

Se a nossa história fosse terminar por aqui, todos diriam: “Mas que estilo de vida ideal, essa família vive uma vida de sonho”.

Mas a realidade é diferente. O nosso “final feliz” ainda não chegou.

Exatamente um ano atrás, o Brasil noticiava a primeira morte de vítima do novo coronavírus no país. Nós então reforçamos as medidas de proteção e segurança e conseguimos terminar o ano sem maiores temores.

Entrando em 2021, porém, a onda de contaminação pelo vírus avançou com fúria e foi ganhando proporções alarmantes! Só entre pessoas do meu convívio, os casos de contaminação foram acontecendo um após outro: parentes e conhecidos idosos ficaram doentes e alguns deles não resistiram; um professor meu da faculdade faleceu aos 51 anos; minha amiga de São Paulo perdeu o pai, a mãe e o avô para a Covid-19.

Como meus pais estão perto dos 60, eu tinha recomendado que permanecessem em casa, no entanto, meu pai teima em acordar na hora de costume e sair, o que me deixa apreensivo.

Minha mãe tinha começado um novo negócio, que é de entregar obento e comida caseira brasileira – tudo preparado por ela – pelo sistema delivery. Eu comecei a trabalhar de casa, ao mesmo tempo em que passei a ajudar nos negócios do meu pai, justamente para poupá-lo.

Ocorre que, no mês passado, a minha mãe passou mal, fez exames e ficamos sabendo que ela estava com a Covid-19. Nós também fizemos os testes e o resultado foi que meu pai e meu irmão testaram positivo e ficaram hospitalizados durante 41 dias. Enquanto isso, o estado da minha mãe se agravou e, infelizmente, ela veio a falecer algumas horas antes de ser transferida para um hospital maior. Dei a triste notícia para meu pai e meu irmão depois que eles tiveram alta.

Desde então, meu irmão vive trancado no quarto, chorando e repetindo a toda hora “A mãe morreu por minha causa”. Ocorre que em fins de janeiro, ele não contou nada para nós e foi a uma festa badalada no apartamento de um amigo. Por seu lado, todos os dias, o meu pai fica sentado na cadeira favorita de minha mãe bebendo e se lamentando: “Eu que trouxe o vírus pra dentro de casa quando saí para pescar”.

Eu estou muito triste, mas nem quero pensar de quem foi a culpa. Meu consolo está nas palavras da Bíblia que a Anelisa me enviou:

“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu: 2há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou; 3tempo de matar e tempo de curar; tempo de derribar e tempo de edificar; 4tempo de chorar e tempo de rir; tempo de prantear e tempo de saltar de alegria” (Eclesiastes 3:1-4)

Vou continuar trabalhando remoto, esperando pacientemente que meu pai e meu irmão se recuperem. Quero ir administrando os negócios da família e o bem-estar dos nossos funcionários. Farei tudo o que estiver ao meu alcance com o maior empenho.

Não vai ser a Covid que vai me derrotar, não!

 

© 2021 Laura Honda-Hasegawa

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Sobre esta série

Em 1988 li uma notícia sobre decasségui e logo pensei: “Isto pode dar uma boa história”. Mas nem imaginei que eu mesma pudesse ser a autora dessa história...

Em 1990 terminei meu primeiro livro e na cena final a personagem principal Kimiko parte para o Japão como decasségui. Onze anos depois me pediram para escrever um conto e acabei escolhendo o tema “Decasségui”. 

Em 2008 eu também passei pela experiência de ser decasségui, o que me fez indagar: O que é ser decasségui?Onde é o seu lugar?

Eu pude sentir na pele que o decasségui se situa num universo muito complicado.

Através desta série gostaria de, junto com você, refletir sobre estas questões.

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About the Author

Nasceu na Capital de São Paulo em 1947. Atuou na área da educação até 2009. Desde então, tem se dedicado exclusivamente à literatura, escrevendo ensaios, contos e romances, tudo sob o ponto de vista nikkei.

Passou a infância ouvindo as histórias infantis do Japão contadas por sua mãe. Na adolescência lia mensalmente a edição de Shojo Kurabu, revista juvenil para meninas importada do Japão. Assistiu a quase todos os filmes de Ozu, desenvolvendo, ao longo da vida, uma grande admiração pela cultura japonesa.

Atualizado em maio de 2023

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