As lembranças que borbulham em minha memória, as melhores, são as de minha infância. Minha primeira participação em uma peça de teatro aos 5 anos de idade, representando o Imperador do Japão, sentado ao lado de minha Imperatriz, no Nihongakô. Nunca me esqueci. Parecia que havia nascido para isso. Para ser Imperador. Eram outros tempos.
Nessa idade, eu ia sozinho para a escola de japonês, de ônibus. O motorista e o cobrador me conheciam. E me deixavam na porta da Escola. Sempre fui muito independente desde muito pequeno, influenciado talvez pela dura vida que meus pais tiveram na lavoura dos sítios em que passaram suas infâncias, depois de terem chegado ao Brasil como Imigrantes. Sempre tiveram que trabalhar duro para ter comida na mesa. E essa foi a primeira herança que meus Pais deixaram para nós, seus 3 filhos. O trabalho duro para merecer ter a mesa farta. Mas não me lembro de passar por dificuldades.
Meu Pai era um homem muito inteligente, popular e respeitado. Lembro também da sua letra refinadamente escrita em um português impecável, em cartas de amor à minha Mãe e certamente treinadas nos cadernos de caligrafia, tão populares naquela época. Eu sempre tive certeza absoluta que ele verdadeiramente amava minha mãe. Engraçado isso para um legítimo “Issei de Osaka”. Porque naquela época, eram comuns os miais – antigo costume japonês onde são os pais que escolhem com quem seus filhos vão se casar. Mas a verdade é que, pelas histórias que escutei, meu Pai conquistou o coração de minha Mãe. Não houve miai.
Meu Pai era realmente um japonês diferente. Adorava sentar no quintal de casa para comer ostras regadas a sal e limão, comigo e com meu irmão mais novo. Ou fazer Sukiyaki. Na época, eu não sabia por que gostava tanto dos Sukiyakis que ele fazia.Hoje sei o porquê. Aquela sensação de todos reunidos em volta da mesa, comendo juntos. Nossa família, tios, primos, Obachan. A alegria de estar juntos. Agora é só sentimento de saudade.
Ele também era Sensei de Judô, mas aquele Judô antigo, da época do pré-guerra. Judô lindo de se ver.
Falava, lia e escrevia em português com desenvoltura. E quando fiz 7 anos, me disse que não iria mais falar em japonês comigo, porque eu era brasileiro, tinha nascido no Brasil e devia aprender a falar, ler e escrever em um português correto. Esse fato mudaria por completo, o resto de minha vida. Acabei por esquecer por completo a língua japonesa. Esqueci a escrita, a leitura e a fala. Tornei-me um descendente totalmente brasileiro.
Acho que também por essa razão nunca consegui namorar uma descendente nipônica e acabei por ter somente amigos gaijins. Pouquíssimos amigos nikkeis. Meu melhor amigo do tempo de escola fundamental (antigamente era chamado de primário e ginasial) era um garoto negro, o Miltom e que era o garoto mais inteligente da escola. E também era o garoto que namorava a menina mais linda da escola! Incrível isso quase 50 anos atrás!!!
Meu Pai também não era flor que se cheirasse muito bem quando se tratava de brigas. Lembro-me uma vez, no Nihongakô, em que apanhei de três garotos da escola. Cheguei chorando em casa. Sua reação foi imediata: Amanhã, você pega um por um, sem dó!
Não tive dúvidas. No dia seguinte, seguindo a ordem de meu Pai, apanhei um pedaço de pau e rachei a cabeça de um dos garotos. Arranquei sangue. Fui atrás dos outros, mas fugiram. Meu Sensei me pegou antes. E imediatamente me conduziu para casa.
Lá chegando quis falar com meu Pai, para reclamar do que eu tinha feito com o garoto. Meu Pai disse: Ontem, quando meu filho apanhou dos três garotos, o Sensei não veio à minha casa para se desculpar pelo acontecido. Por que vem hoje reclamar? Fui eu que dei ordem para que ele revidasse hoje! Se ele fez, atendeu à minha ordem e estou orgulhoso dele! Ele não vai procurar briga com ninguém, mas também não vai mais apanhar em sua escola, porque vão respeitá-lo! Eram outros tempos! O Sensei se desculpou e foi embora.
Era um tempo de honra e ética moral. Um tempo em que se faziam acordos no fio do bigode, como se dizia antigamente. Casas eram vendidas com recibos de caderno. Tenho muita saudade daquele tempo. E muito mais saudade de meu Pai, o verdadeiro Imperador do Reino de minha infância.
© 2016 Mitsuo Luiz Kariya